segunda-feira, 23 de março de 2009

"FORAGIDOS"


Mais um texto dos tempos de ongueira...
"Reinserção Social" é um termo técnico, não concordo com ele, pois a maioria dos que estão nas unidades prisionais deste país nunca foram inseridos no contexto social, nunca participaram do processo produtivo, nunca foram visto realmente como cidadãos, não há como "reinserir" quem nunca esteve inserido.

"O Papel da família na 'reinserção' do cidadão preso"

“A construção social da desigualdade é ditada por alguns fatores: símbolos, leis, normas, valores, instituições e subjetividade."
(Vera Vieira)


Desde a pré-história, quando se organizou em grupos, o homem sentiu a necessidade de estabelecer regras de convívio, ou seja, limites, a fim de conviver com seus semelhantes. Acreditamos que o comportamento esteja intimamente ligado às crenças que cada sujeito formou ao longo da vida, determinando sua atitude e seu comportamento.

A sociedade, como um todo, também determina e é determinada pela forma como cada indivíduo interage com os outros.

Não podemos compreender a 'reinserção' social sem a premissa dessa interação. É necessário o movimento de aproximação e descodificação desses atores (o cidadão encarcerado, sua família, os operadores do direito e a sociedade), para podermos pensar em reinserir o homem e a mulher presos, em condições de garantir-lhes o mínimo de adaptabilidade ao convívio social; nesse processo, a família é o ator estratégico; é aquele que faz a ponte entre a sociedade e o/a preso/a.

“Homens e mulheres, somos corpos conscientes e sociais no mundo, na história, e com a história, que nos faz e refaz enquanto a fazemos. Porque nos achamos com o mundo e não só no mundo, como se fosse ele um puro suporte onde nossa vida se daria, nos fizemos históricos e nos tornamos capazes de inventar a existência, servindo-nos para tanto do que a vida nos ofereceu. É por isso que a nossa presença no mundo não se pode reduzir à mera adaptação a ele.

Estar no mundo só vira “presença” nele quando o ser que está se sabe estando e, por isso, se torna hábil para aprender a interferir nele, a mudálo, a se tornar, portanto, capaz de acrescentar à posição de objeto, enquanto no mundo, a de sujeito.

Estar no mundo e com o mundo como corpos conscientes, existentes, histórico-sociais implica a assunção, por nossa parte, da inteireza de que vimos sendo.” (Paulo Freire).

Precisamos perceber-nos no mundo como parte possível de interagir com o todo; não há resposta positiva sem a interação das partes.

O trabalho para a 'reintegração' social do/a preso/a só começará a dar resultados significativos e que altere as estatísticas de reincidência quando o Estado e os operadores do direito perceberem o familiar como parte do processo de reinserção.

A família é um componente precioso para o resgate de princípios básicos de convivência, ética e moral. Por isso, torna-se parceira essencial em qualquer trabalho em que a volta ao convívio social se faça presente. É estranho que até hoje os operadores do Direito não percebam a família como suporte de um trabalho de sensibilização.

Ela aparece em audiências com os juízes mais para ouvir do que para opinar. Não se percebe a família como contribuinte ativa para a produção científica, a não ser como público-alvo, e nunca como um ator importante na implantação do objetivo real e legal da execução da pena, que é a 'reinserção' de forma positiva e produtiva do cidadão/ cidadã presos.

Não se tem notícia do desempenho da família como parceira do Judiciário/Executivo no balizamento de ações que gerem uma resposta positiva para a reincidência, por meio de ações pensadas e coordenadas, tendo a família como ponto central a ser trabalhado como sustentáculo para a volta dos cidadãos encarcerados.

Na formulação de políticas, é fundamental qualificar a participação desses atores com os quais se trabalha. Devemos ampliar as noções, de direito e cidadania, para muito além do que tradicionalmente é conquistado. Temos que observar as necessidades básicas dessa família, fazendo-a acessar uma renda mínima e conseqüentemente a segurança alimentar para, então, pensarmos em reintegrar alguém.

O cidadão preso não é um ser isolado em si mesmo, não é um morador desgarrado de Marte. Por isso, pensar a volta desse indivíduo sem a devida preparação preliminar e um trabalho consistente de recuperação de toda a família faz com que o fantasma da reincidência seja uma constante.

A contribuição da família é de extrema importância e pode dar-se de várias formas: a partir da capacitação como forma de acessar novos conhecimentos e usá-los em palestras de sensibilização, atuar como agente multiplicadora de informações sobre cidadania, saúde, valores morais e éticos etc. Monitorar em parceria com o Estado atividades do cumprimento das penas alternativas, contribuir para a mudança de algumas políticas públicas através da sua experimentação, detectar e agregar familiares com nível médio e superior aos projetos desenvolvidos para presos, capacitá-los para utilizar mecanismos lúdicos e culturais para a sensibilização dos seus familiares jovens.

As relações não podem se balizar no binômio “Vigiar e Punir”, como diz Foucault. A família deve ser vista não por meio dos estereótipos lombrosianos e sim como um interlocutor confiável, tendo um papel intransferível, que é o de agente ressocializador e deve ser co-partícipe e co-responsável na reinserção social do seu preso; já que cumprem pena compulsoriamente, devem ser também tratados de forma a poder receber o seu familiar e participar das atividades e capacitações pré-reinserção que deveriam ser implantadas nas unidades prisionais como um conjunto de oficinas profissionalizantes, artesanais, lúdicas como forma de preparo para a volta ao convívio social.

Envolver a família em um trabalho de resgate pontual (o do seu familiar preso) tem na realidade um objetivo muito mais abrangente e profundo do que única e exclusivamente a preparação para a volta do seu familiar. Acima de tudo, tal atitude traz a família para o centro das discussões como mais uma possível parceira, trabalha a sua auto-estima, agrega valor ao trabalho sofrível feito nos Estados e oferece sustentáculo estrutural para futuras relações dessa família, que, a partir dessa visão inclusiva, passará a se perceber cidadã.

Os operadores do Direito, o Ministério da Justiça, o Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN, não podem continuar a ver a família como um apêndice da questão. Deve ser compreendida a sua especificidade como parceira na rede social de apoio, e como um dos atores fundamentais para a reintegração; ela deve ser capacitada para cumprir o seu papel de veículo de sensibilização do seu familiar, percebendo-se cidadãos/ cidadãs com condições de interferirem nas políticas públicas e exercerem o seu papel de atores/parceiros do Poder Judiciário e do Poder Executivo na co-responsabilidade da execução da pena na sua fase pré-reinserção e na inserção.

Ainda não se tem um projeto-piloto que capacite essa população. Ainda somos entendidos como atores de menor importância, e não somos vistos como parceiros confiáveis para a implementação de ações e/ou discussões sobre políticas publicas inclusivas.

Faz-se necessário usar o princípio da razoabilidade para entender o papel a ser desempenhado pela família em parceria com o Estado, para o resgate não só do indivíduo, mas de milhares de famílias, de uma geração.

Detectar, capacitar e incluir essa família na vida produtiva da sociedade são atitudes de suma importância na volta do cidadão/ã preso/a.

O trabalho de reconstrução é o mais difícil. Requer cuidado, paciência e disciplina. É necessário desarmar os espíritos e aguçar os ouvidos de todos os atores para que se percebam e se escutem, objetivando um trabalho conjunto para minimizar os efeitos das ações não-inclusivas que o Estado oferece no decorrer do cumprimento da pena; que por não ter o caráter educativo, fomenta o ódio, afastando o indivíduo do convívio social produtivo, fazendo-o voltar a reincidir nas ações negativas.

A família não deve ser vista como uma mera vítima estática da aplicabilidade da Lei que a pune compulsoriamente; ela deve ser percebida como peça-chave para o trabalho de diminuição da reincidência.

Não perceber a família no contexto da vida desses homens e mulheres presos, é não investir na possibilidade de resgate, na diminuição da reincidência, no retorno da violência a níveis aceitáveis. Sabemos que as prisões são linhas de produção ativas de aperfeiçoamento da marginalidade, por isso é urgente a inclusão da família no contexto da reinserção social como parceira agregadora de conhecimento empírico, na construção de uma via para um diálogo sobre a responsabilidade de todos os atores envolvidos no processo de reinserção do cidadão/ ã presos. Tendo todos os atores (sociedade, operadores do direito, o executivo e o familiar), a possibilidade de, conjuntamente, construírem um projeto viável de reinserção para o preso (pré-inserção) e o egresso (inserção social).

A família precisa ser vista como peça estratégica na sensibilização do seu familiar, precisa ser capacitada para ser um agente ressocializador; precisa descobrir que a sua participação é de fundamental importância para a modificação qualitativa do seu familiar.

É necessário que se pense em programas federais, estaduais e municipais que proponham o apadrinhamento por um determinado período de famílias de presos pobres, por meio do acesso a programas já existentes, tais como vale-gás, cestas básicas, bolsa-escola e um trabalho efetivo do serviço social do sistema penitenciário na orientação da família à obtenção do benefício do auxílio reclusão.

É necessário que esses benefícios venham acoplados a atividades (cursos de qualificação profissional, de aperfeiçoamento, de gestão de microempresas e cooperativas), com o objetivo de inserir esses atores (o preso e a sua família) no mercado de trabalho.

É necessária a sensibilização da iniciativa privada para a importância do trabalho preventivo, através da absorção da força de trabalho do egresso, além do estímulo ao mercado por meio de incentivos fiscais a empresas que absorvam em seus quadros egressos e empresas que instalem oficinas laborativas nas unidades prisionais.

É necessário que as Universidades possam participar desse esforço conjunto através de seus professores e estagiários na criação de um Banco de Horas Multidisciplinar, para o acompanhamento e suporte na reintegração social do preso e sua família.

É necessária a participação da sociedade civil organizada por meio das suas instituições representativas – Organizações Não- Governamentais (ONG’s), grupos de apoio, Igreja, Fundações... – no acompanhamento técnico de atividades de pré-reinserção, nas unidades prisionais e no monitoramento das famílias e do egresso nas atividades previstas em parceria com o Poder Judiciário e o Executivo.

Algo importante nas ações, em relação ao Estado e às políticas públicas, é que precisamos inicialmente ter a capacidade de reconhecer quais os espaços estratégicos de ocupação.

É extremamente necessário que os operadores do Direito estimulem a inclusão da família no processo de reinserção do seu preso, e que a avaliação do grau de envolvimento da família gere relatórios que facilitem a obtenção de benefícios.

Mais do que nunca, face ao agravamento das relações interpessoais na sociedade como um todo e em especial entre as classes mais desfavorecidas, é preciso um esforço conjunto no trabalho preventivo, humano e comprometido não só com o resgate do indivíduo, mas também, como uma ação estratégica de segurança pública.

A sociedade sempre pensa em mais repressão quando se trata de políticas de segurança.

Precisamos avançar e construir uma interface com o diferente, neutralizar ações negativas por meio de ações solidárias, reconstruir o conceito de solidariedade cidadã respeitando as diferenças e estimulando as iniciativas que conduzam ao crescimento qualitativo do cidadão preso e da sua família.

Namastê!

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