sábado, 11 de abril de 2009

"FORAGIDOS"


Mulheres que Esperam...
A vida, a vez, a hora passar...
Mas que enquanto esperam se tornam alquimistas, malabaristas, para tocar a vida, criar os filhos, esperando a sua própria hora chegar.
Para ler, segue um texto de 2005.
Para todos, um belo Sabado de Aleluia!!

Família Carcerária - População Invisível

“Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela.
E oculta mão colora alguém em mim.”
Fernando Pessoa.


Sejam bem vindos ao mundo daqueles que mesmo sendo, não são!
Seres invisíveis, destituídos de certezas e buscando equilíbrio a cada parte da etapa cumprida, na tentativa de não submergir ao caos que é viver sem futuro.
Esse é um minúsculo retrato da família carcerária, que povoa as portas das unidades prisionais deste país; na sua maioria, mulheres.
Como caminhar nesse terreno pantanoso que é o mundo das prisões?
Como sobreviver a ela?
Como manter a auto-estima ante a negação contínua de respeito?
Como retornar a vida livre resguardando um mínimo de auto-estima?
São respostas que buscamos no nosso dia a dia, para nos mantermos vivas, para chegarmos ao porto seguro que é a reorganização familiar pós-martírio.
Não é uma escolha fácil caminhar ao lado dos que foram punidos, não é uma tarefa lúdica ser esposa, mãe, irmã de um cidadão preso; antes de tudo, o exercício contínuo de auto-estima é ferramenta primordial para manter-se o equilíbrio pessoal e familiar.
Caminhar, por escolha própria, por veredas que não são as suas e aceitar com carinho as futuras intempéries do tempo, é uma tarefa difícil e arriscada; é um grande enigma a ser resolvido.
Amar um cidadão preso é um exercício de doação, é ultrapassar a sua própria pessoa e eleger o outro como objetivo prioritário, é vivenciar a incondicionalidade.
Estar ao lado de alguém apartado do convívio social é abrir mão de sonhos possíveis, é se permitir aprender com os erros que não foram seus e investir continuamente na sinalização de que é possível se reescrever a própria história.
São mulheres que vivem o dia de hoje como se fosse o último, como se devessem absorver tudo em um só momento, por não saber como será a continuação do que está sendo vivenciado.
Mulheres arrimos de família, sustentáculos de famílias desmembradas, sinalizadoras de mudanças possíveis, buscando diariamente criar formas de ter uma vida minimamente normal.
A família do preso nunca é vista, não é percebida nas diferentes etapas punitivas aplicadas ao seu familiar.
Nessa perspectiva, nem a sociedade, nem o Judiciário, nem o Executivo ou mesmo o Legislativo percebem essa população invisível que permeia as prisões; é como se o preso fosse um ser unitário, destituído de laços familiares, como se ele não fizesse parte de algo maior do ele mesmo, que é a sociedade. Não se percebe na pena aplicada o desdobramento compulsório da mesma, sobre a família do apenado, não somos percebidas como parte da sociedade, pelo fato de estar ao lado de quem optou por caminhos negativos; só somos percebidas no contexto social quando negamos a nossa própria história, quando mentimos ou omitimos uma parte das nossas vidas.
No imaginário coletivo, a opção pelo que o difere da “normalidade” é sempre uma opção de caráter, o que é basicamente falacioso; existem vários porquês para tal opção e o amor é um deles.
As famílias vivem em um mundo dual, assumindo diferentes papéis, para conseguirem a aceitação social. Muitas mulheres alçadas subitamente, à condição de arrimo, na maioria das vezes escondem seus vínculos com a prisão para poderem conseguir ou manter um posto de trabalho; um exercício constante da mentira ou da omissão para que possam permanecer ativas e sustentarem seus filhos. Comumente perdem seus empregos quando os patrões descobrem seus parentescos; são vistas como cúmplices ou possíveis delinqüentes, algo cruelmente “Lombrosiano”, é como se tivéssemos características físicas que nos imputasse o descrédito como pena acessória, à pena que compulsoriamente pagamos, é como se possuíssemos uma lepra moral.
Quando ocupam cargos de chefia, seus companheiros presos são relegados ao limbo, pois para serem aceitas devem negar o amor que sente pelo diferente.
Crescer profissionalmente sendo familiar de um preso requer uma grande auto-estima, requer o abate de diversos “leões” diários, para continuar se percebendo possível, apesar do que pensam sobre nós.
Paulo Freire muito sabiamente diz que: “Nenhuma dicotomia é capaz de nos explicar. Não somos apenas o que adquirimos, nem tampouco o que herdamos. Estamos sendo a tensa relação entre o que herdamos e o que adquirimos.”
Quando não moram nos núcleos ou cinturões de pobreza do Estado; onde a comunidade às conhecem; muitas mulheres vivem no ‘penoso mundo da negação’; negam o que são para serem aceitas pelos vizinhos, conhecidos e colegas de escola e trabalho, transformam-se em personalidades duais. Quando saem para visitar o seu preso, acondicionam as sacolas de “sucatas” em bolsas de viagem para que os vizinhos não fiquem curiosos, sentem vergonha da história em que são participantes involuntárias; a pena não é nossa, mas é como se fosse tal o peso do julgamento que fazem de nós, é como se o nosso sentimento fosse criminoso e o amor que possuímos fosse vergonhoso por não sê-lo por alguém “normal”, e por isso devemos ser punidas diariamente por nossa “má escolha”.
Aos vizinhos muitas, são viúvas ou separadas; quando se dizem casadas, os maridos trabalham em outro Estado ou estão hospitalizados; ao ouvirem comentários cáusticos sobre presos e as prisões, sentem-se humilhadas, é como se elas mesmas fossem as criminosas. É difícil se ter duas vidas; ser-se e negar-se ao mesmo tempo; Fernando Pessoa confirma nossos sentimentos: “Vive do que nega e nega aquilo que vive”.
Os filhos aprendem desde cedo que o pai está no hospital e quando já entendem o peso da masmorra são orientados, na maioria das vezes, a também se auto-negarem. Dizem aos professores, vizinhos e colegas que seus pais estão viajando ou estão separados da mãe, e sentem com isso, desde pequenos, que não fazem parte da grande história de uma sociedade e sim , vivem obrigatoriamente, à margem do que são ou do que poderiam ser.
Muitas mulheres estudam, mas seus professores e colegas não as conhecem; delas, só vêem a face construída sobre a “vergonha imposta”, maquiagem usada para a aceitação social.
Muitas vivem em morros e favelas, convivendo diariamente com a violência no batente das suas portas, observando; na maioria das vezes acuadas; aos desdobramentos de uma guerra que não é sua. Mas, ao mesmo tempo a comunidade é o “local seguro” em que elas podem ser elas mesmas, onde não precisam fingir ou negar quem são e o que sentem; terreno conhecido, onde muitas possuem a mesma história de espera. Lá, são simplesmente comuns, lá são casadas com alguém; os filhos tem um pai, e esse pai tem nome e seus vizinhos sabem para onde vão aos finais de semana.
O caos as torna livres!
A ida à prisão é sempre precedida de ansiedade e na saída sempre um sentimento, de pesar e impotência nos acompanha. Vivenciamos o amor em doses homeopáticas, um pouco a cada semana, como tentei traduzir nessa poesia que fiz para meu companheiro preso:

“DOMINGOS”

Os domingos, mesmo com chuva, são ensolarados.
Os domingos são mágicos, saborosos, consistentes.
Os domingos são poéticos, são acolhedores, são definitivos.
Os domingos são abençoados, são alegres, trazem paz.
Os domingos são fundamentais, são agregadores, imperativos.
Os domingos elevam, harmonizam, transformam.
Os domingos preenchem, os domingos esperam, os domingos sorriem.
Os domingos são inteligentes, tem humor, odor, sabor.
Os domingos acalmam, acolhem, realizam.
Os domingos são pérolas, músicas, risos.
Os domingos são especiais, únicos, dignos.
Os domingos me curam, me salvam, me redimem.
Nos domingos, vejo você!

É uma missão difícil construir relações estáveis ou equilibradas em uma vida dividida, onde os papéis são trocados conforme o cenário da ópera a ser apresentada; construir bases sólidas nessas condições é um prêmio reservado a poucos.
Eric Hobsbawm em seu livro “Sobre História”, escreve uma frase que se encaixa perfeitamente no nosso sentimento; “o pior é que passamos a nos habituar ao desumano, aprendemos a tolerar o intolerável”.
A prisão faz com que tenhamos de conviver com o intolerável e nos adaptarmos a ele; a mulher se sente obrigada a negar seus sentimentos, eleger a viuvez ou a separação como desculpa plausível. Vivem entre a realidade da prisão e a imensa necessidade de aceitação social para não verem se repetir entre os seus filhos a mesma história dos pais.
A falta de sensibilidade dos diversos setores da sociedade em perceber a família como parte importante de um processo de recondução de seu preso ao convívio social, faz com que essa família ganhe a invisibilidade como herança perpétua. É como se ainda fossemos relegadas aos “porões negreiros”, acorrentadas; o corpo preso e o coração a voar.
Vôo abissal!
Nunca sabem ao certo como será o que as esperam, todo dia é um dia mais perto da liberdade, e é isso que as move; mulheres que esperam!
Mulheres empurradas para a marginalidade, pela cegueira coletiva que se abateu sobre a sociedade e só perdem a sua invisibilidade quando são pegas exercitando o “ilegal”.
As suas dores anteriores, sua fome, a fome dos seus filhos, sua falta de futuro, a sua impotência, a marginalidade como caminho certo; isso não foi visto.
São seres invisíveis aos olhos sociais, não são percebidas como parte do tecido que compõe a sociedade.
Algumas conseguem emergir do caos, apesar de deixarem no caminho, pedaços de si mesmas, buscando nas migalhas de solidariedade que lhes é dada o estímulo para recomporem suas histórias.
Mas somos agentes sensibilizadoras natas, vivemos negociando paciência com os nossos presos, face ao desrespeito oferecido, pelo Estado na execução das penas.
Somos invisíveis também aos olhos do Judiciário que, nem de longe percebe o peso da prisão sobre a família e a carga de culpa que nos é oferecida como pena complementar.
Tanto o poder Executivo quanto o Judiciário, não percebem que a família é um excelente agente de sensibilização para seu preso, é ela que na maioria das vezes consegue diminuir a “fervura” nas prisões, agindo como intermediadoras junto ao Estado, nas questões que afligem os seus familiares apenados.
A sociedade se torna cruel quando o seu desejo de vingança, atinge gerações sucessiva do preso, oferecendo aos seus filhos, netos a mesma marca indelével com a qual marcou seus pais e avós. Não podemos ser tatuadas com a marca da irrecuperabilidade por atos que não foram praticados por nós. É preciso avançar na construção de uma sociedade melhor, estabelecer pontes para que famílias inteiras possam ser incluídas no tecido social; é preciso que a sociedade, através das suas instituições e das diversas instâncias governamentais, estimule a construção de programas e redes de serviços para o enfrentamento das questões que atingem essa população. Se faz necessário um esforço coletivo para desenvolver um trabalho de inclusão dessas famílias na vida produtiva, fortalecer seus vínculos afetivos, estimular a auto-valorização através da criação de redes de serviços, tendo como atores estratégicos as instituições da sociedade civil e grupos governamentais, para o apoio e inclusão dessas famílias.
É preciso que o tema “A família do preso e a complusoriedade das penas sobre a mesma”, seja incluído nas pautas de discussões governamentais em todo os seus níveis, através dos órgãos ligados aos direitos humanos, na formação de redes de orientação e serviços para o resgate de uma parcela da população. Esse é um trabalho preventivo, precisamos oferecer à família do preso uma opção diferente do caminho marginal, estimulá-la a perceber-se como ferramenta fundamental para o resgate da sua história familiar.
A invisibilidade dessa população alcança todos setores da máquina estatal; desde a falta de percepção que as incluam, por exemplo, no espaço físico das unidades prisionais, que não são projetadas observando a população flutuante (a família), que acorrem às suas dependência quase todos os dias da semana, demonstrando que não fazemos parte sequer de um estudo apurado do poder Executivo sobre o uso do espaço físico das prisões, como se o preso fosse ficar incomunicável durante todo o cumprimento da sua pena; à falta de um programa de apoio familiar que promova, ainda intra-muros, e coordenado pelo Serviço Social das Secretarias de Administração Penitenciária nos Estados, reuniões de troca de experiências, fortalecendo os laços de amizade, criando uma rede de apoio e discussão sobre a realidade em que vivem e como serem o próprio veículo de mudança, entendendo assim, a sua co-responsabilidade no processo de recondução do seu preso.
É preciso que o corpo técnico das prisões, interaja com a família; é necessário a percepção de que o homem preso está apartado do convívio “doméstico” mas, possui uma família que o acompanha; mesmo de longe e em doses homeopáticas; nas visitas semanais e a interação desses atores seria um caminho saudável para a diminuição de conflitos intra-muros ou familiares.
É preciso provar que essas mulheres são geradoras de capital social, portanto, imperativo se faz uma proposta inclusiva, para que essa população se encontre, se entenda e se reconheça parte de um todo indivisível de forma a poderem transformar suas vidas e a vida da família a qual pertencem, pois as melhores soluções para os problemas dessa população invisível são aquelas em que as mulheres possam ser estimuladas a serem protagonista das próprias mudanças dentro de um processo de resgate familiar. É preciso que sejam estimuladas a se converterem em atores sociais responsáveis por gerar alternativas positivas para suas famílias. É necessário desenvolver atividades gregárias para que elas percebam que não estão sós e se reconheçam umas nas outras como pessoas possíveis de encontrarem soluções para as questões que as afligem.
Sabemos que muitas veredas há para se percorrer, temos que superar velhos conceitos, alterar paradigmas, estabelecer compromissos para mudanças estruturais, devemos transpor o conceito de “apartheid” e trabalhar a inclusão familiar.
Sem a percepção da família como um ator social importante, será difícil desenvolver um trabalho que promova uma diminuição da reincidência; é preciso que os órgãos da administração pública, ligados a esse tema : Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça, Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Departamento Penitenciário Nacional -DEPEN, as Secretarias de Administração Penitenciária e de Direitos Humanos nos Estados, possam avançar além das fronteiras das pesquisas e discussões, para um trabalho efetivo de redução de índices de reincidência através da parceria com a família.
É necessário fazer um diagnóstico dessa população: quem são, onde moram, se trabalham, se tem filhos, do que vivem e como vivem, se estudam, tendo como objetivo, detectar, capacitar e incluir essas mulheres em programas de apoio familiar, como fome zero, de habitação, trabalho, educação, tendo como contra partida a formação de agentes sensibilizadores, que poderão passar a trabalhar na minimização de conflitos entre o Estado e o preso; é preciso estimular a formação de redes de apoio e serviços em parceria com as instituições da sociedade civil para capacitação e monitoramento desse público alvo.
É preciso estabelecer metas, e não apenas formas e fórmulas teóricas, mas estabelecer princípios que permitam buscar os elementos necessários às mudanças.
O compromisso com a reconstrução familiar é mais do que um trabalho preventivo contra a reincidência do preso ou da entrada do seu filho para o mundo marginal, mas o fortalecimento das bases familiares, é acima de tudo, uma estratégia eficaz de prevenção.
Somos mais de um milhão de mulheres que povoam as portas das unidades prisionais deste país, arrimos de família que lutam pela dignidade dos seus maridos e filhos, cidadãs brasileiras, pessoas possíveis e que precisam de apoio para, poderem se resgatar e resgatarem aos seus, mas a pena é extensiva a família e todos pagam conjuntamente.
É preciso acreditar no resgate do indivíduo, no fortalecimento dos laços afetivos, na possibilidade de mudanças qualitativas na relação do preso com o mundo através do melhor relacionamento da sua família com a sociedade; é preciso acreditar na capacidade do ser humano de escolher caminhos melhores.
“Por esse Brasil a fora, milhares de foragidos e presos formam um exército de marginalizados, condenados à violência e a humilhação que atinge também famílias e gerações sucessivas. Estigma: filho marginais, mulheres sem perspectiva”. William S. Lima.
É necessário ouvir a voz das prisões, é preciso ouvir as mulheres que esperam!
No novo milênio se faz necessário avançar, criar novas interfaces. Ouvir essa parcela da população não é compactuar com o que é desviante, e sim poder minimizar conflitos, reconhecer que todos são cidadãos brasileiros e possuidores de deveres e de direitos.
Nessa caminhada os meios de comunicação tem uma importância fundamental, pois são formadores de opinião e contribuem para a formação do pensamento crítico social, se faz necessário, portanto, que haja um trabalho de decodificação dessa população e um processo de esclarecimento da opinião pública sobre essas famílias e a importância profilática de um trabalho inclusivo. É preciso que essas mulheres, filhos, parentes, não sejam somente percebidos durante as rebeliões, quando os meios de comunicação os expõem nas portas das prisões, em estado de histeria por temerem o desdobramento violento de uma invasão pelos agentes de segurança.
É necessário que a mídia seja mais que um veículo de informação, e que possa usar o seu poder formador de opinião para decodificar e apresentar essa população a uma sociedade que não a conhece, fazendo com que surja uma percepção correta dessas famílias dentro de um contexto de cidadania; e que tenha o cuidado devido na forma de tratar essa população no conteúdo das suas matérias, para que não se confundam no conceito de família à cumplicidade e a marginalidade.
Só através desse apoio será possível fazer com que a sociedade veja que todos fazem parte da mesma história e a melhor forma de construí-la é perceber no “outro” o mesmo direito de ser cidadão e contribuir para a construção de uma sociedade mais harmônica.
Mas para tanto é preciso que haja mudanças na forma com que o Estado percebe essa população, é importante que os gestores públicos entendam que a família não é a extensão da “quadrilha” ou “cúmplices” nas ações isoladas, que seus filhos não precisam ter necessariamente o mesmo destino dos seus pais.
È tempo de avançar, criar uma nova forma de relacionamento do Estado com a sua população, enxergar esse enorme contingente de mulheres que esperam ser percebidas como parceiras co-responsáveis, na recondução do seu preso ao convívio com a sociedade.
É um tempo afirmativo, e fundamental é, ir além das velhas certezas, e fomentar novas reflexões, criar movimentos harmônicos de aproximação e percepção dessas famílias pelo restante da sociedade.
Mas, enquanto esperamos; nós mulheres invisíveis, continuaremos a depender de como amanhece as prisões para podermos tocar o nosso dia com o mínimo de esperança.
Mas, o amor nos conduz!

Namastê!

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