(Hidroporto - Av. Mém de Sá - Porto dos Tainheiros)
18/03/09
Olá! Bom dia!
Sei que o tempo de vocês é escasso e não espero que leiam com a avidez que degustam uma grande obra, mas aguardo com paciência que possam compreender como somos e o quanto; queremos retornar a viver, poder ter uma vida normal e com dignidade. Muitos falam de direitos humanos, muitos se solidarizam, mas poucos conhecem como vive e o que sentem pessoas como nós.
Boa leitura!
Olá! Bom dia!
Sei que o tempo de vocês é escasso e não espero que leiam com a avidez que degustam uma grande obra, mas aguardo com paciência que possam compreender como somos e o quanto; queremos retornar a viver, poder ter uma vida normal e com dignidade. Muitos falam de direitos humanos, muitos se solidarizam, mas poucos conhecem como vive e o que sentem pessoas como nós.
Boa leitura!
Capítulo III
Leio velhas lembranças...“Ando ansiosa, irrequieta; é como um parto; às vezes acordo no meio da noite, e posso senti-lo, ando pelas ruas e capturo emoções parecidas com as do tempo de você por perto. Te respiro; percebo teu cheiro nos momentos mais diversos. Sem você tudo é mecânico, o coração não pulsa; apenas se debate. Noites Cruéis! Avassaladoramente solitárias; pesadas, longas, doídas, sem aproximação do seu corpo, que me protege, me aconchega, me aquieta. Noites cruéis de frio, de insônia profunda, de um triste vazio. Madrugadas estéreis de solidão intensa. (07/97).”
Escrevi centenas de cartas nesses últimos vinte anos anos; ridículas e curativas cartas de amor; pequenas explosões controladas de emoção para que a mente mantivesse a sanidade, durante os anos de espera. Separo papéis ao mesmo tempo em que tento transcrever o que sinto nessa caixinha que me olha. Ele vê tv; sei que está preocupado, no fundo se sente culpado pela minha constante prostração. Estou no meu estágio “ostra”, voltada para dentro, exorcizando toda a pena que estou sentindo de mim mesma. Mas mesmo com esse sentimento confuso que me conturba, sei que é um privilégio vivenciar o carinho e o desvelo que ele me oferece, é um privilégio ser amada, mesmo que o preço nem sempre seja aquele que desejamos pagar. Mas o amor tem que ter preço? Sei lá, acho que é o ritmo normal da vida que ela reflita as escolhas que fazemos. Desejei envelhecer com ele; esse foi o primeiro sentimento que tive quando o conheci e, apesar de achar difícil o que temos passado, ganhei o que desejei; um amor, um parceiro leal; uma família. E isso é um privilégio!
Olho para ele e sinto que a minha vida não está passando em vão; temos sonhos e preferimos sonhar a dois. É uma escolha ao mesmo tempo atávica e audaciosa nos tempos de egoísmo profundo.
‘... há previsão de chuvas em regiões isoladas; no centro-oeste...’ segue falando a jornalista em tom monocórdio, sem vida, sobre o surto bendito da natureza contra a audácia constante do minúsculo ser humano; ele me olha com olhos de menino e ri; enquanto digito um pouco de mim, enquanto transformo em palavras a maturidade de um sentimento raro, construído com a descoberta diária, do prazer de estarmos juntos, como companheiro de viagem. Uma viagem; diga-se de passagem, cheia de aventuras, provas de resistência, obstáculos, mas apesar dos percalços; aqui estamos.
Acendo mais um cigarro; já devia ter parado; tive tuberculose há quatro anos. A rua está calma, à noite começa a tomar corpo, os sons diminuem; de vez em quando um carro, um ônibus...
Quando cheguei ao Rio de Janeiro, tinha 19 anos, queria ser médica, estava encantada com a psiquiatria, nessa época estava apaixonada por Freud, queria aprender o que ia, na alma humana, as raízes das suas reações. Minha preparação foi para área de saúde; formei-me em técnica em patologia clínica, vim de Salvador para encara um vestibular de medicina, queria ser médica, ou melhor; achava que queria...
Tive uma infância tranqüila, pai, mãe, carinho, segurança, educação; nada me faltou. Morávamos na ponta de uma península; Ribeira, Península Itapagipana, cidade baixa; para os olhos de menina; o lugar mais lindo do mundo.
Lembro-me da Sorveteria da Ribeira, dos tamarindeiros, da igreja em frente à praia, do antigo aeroporto de hidroaviões, dos Alagados; do Farol da Boa Viagem, do Largo do Bomfim das festas de rua, da segunda–feira gorda; festa que se mudava com todas as suas barracas na madrugada do domingo; último dia da festa do Senhor do Bomfim, para Ribeira, e que ai levando atrás dos caminhões os foliões crônicos para continuarem a folia na segunda. Um dia inteiro de festa com trio elétrico na porta de casa.
Tive uma infância, alegre, praiana; com muito sorvete, banho de mar e com a casa sempre cheia nos finais de semana; meus pais gostavam de receber os parentes e amigos. Aos sábados, cozido, aos domingo, feijoada, e milhares de outras coisas, mania que os nordestinos têm de fazer uma enorme variedade de comida como se fosse possível comê-la toda num só dia. Uma anarquia alimentar!
Não me sentia confortável com tanta gente, mas tentava ser simpática; não fui uma garota problema e mesmo com o desconforto da timidez conseguia me divertir.
Aos dez sabia que ia me casar com meu primo irmão; como era de costume nas tradicionais famílias baianas. Cresci ouvindo que, “os primos são das primas”. Isso significava, tradição, segurança; era o normal; mas quando se tem, dez anos, casar é simplesmente uma palavra, e a vida seguiu normal até os 16, quando comecei a tomar consciência da mortalidade. O câncer passou a ser uma palavra presente a partir daí. Meu pai levou quase dois anos doente e o último ano foi muito duro, a doença se espalhou pelos ossos, metástase. Ele foi digno até o final, grande homem! Gostava de música popular, colecionava quinquilharias, concertava coisas quebradas, era pai dos mendigos do bairro, tinha uma alma boa e um coração digno. Minha mãe e eu não tínhamos muito em comum, mas o amor do meu pai compensava sua aspereza. Ele era um príncipe!
Mesmo pequena sempre fui diferente, me comportava de forma introspectiva. Achava que era de um planeta distante e que tinha sido abduzida; nunca me senti à vontade; tinha poucos amigos, e aprendi a me ocupar com coisas que não dependessem de parcerias. A vida introspectiva é muito intensa e solitária. Passei a ser uma leitora desde menina, Monteiro Lobato, Julio Verne, Irmãos Green, Mil e um noites, gostava também de história em quadrinho, e tudo mais que me caísse nas mãos; adorava palavras cruzadas. Desenvolvi uma forma de me abstrair do convívio com os demais e a leitura passou a ser um grande escudo, e depois, um grande prazer.
Quando se sabe o que falar, mas não se consegue, é melhor não tentar, preferível esperar, observar, antes de se embrenhar num terreno pantanoso, e ficar em pânico sem saber o que dizer; nesses casos, os arroubos de segurança; acabam em paralisia e mutismo, ante a platéia boquiaberta. Por isso sempre preferia diversões que não dependessem de grupos. Era capaz de passar semanas sem sair de casa, simplesmente lendo, continuo sendo assim. Nunca fui à garota mais bonita, mas era simpática, não era muito falante, mas sabia ouvir; nunca consegui falar da minha vida com facilidade, mas era o oráculo de plantão, sempre fui cerebral e prática; os namorados das minhas amigas, as beijavam, mas gostavam de conversava comigo, sempre fui boa ouvinte. Do lado de fora a vida seguia de forma normal, mas dentro de mim ela viajava na velocidade da luz.
Os sentimentos me moveram e me levaram na direção que eles quiseram, nem sempre na direção mais fácil, mas sempre na direção que a emoção pautou; hoje entendo que não é uma forma racional de viver, mais foi à forma mais leal de lidar comigo mesma.
A morte do meu pai foi um grande golpe; certeiro, inclemente, arrasador; ele era meu amigo, meu companheiro, um homem que me amava. Perdi meu chão, ganhei quase quarenta quilos, me senti furtada pela vida.
Era um homem especial; muito magro, alto, era alegre, hospitaleiro, solidário, um homem sempre pronto a ajudar, a ser útil. Andava unicamente de terno branco; possuía um preto e um cinza-azulado que alternava entre casamentos e enterros, o resto era tudo branco, em um do bolso exterior levava cigarros, uma carteira para fumar outra para dar a quem pedisse, e no outro, linha, chumbo e iscas; ele pescava todo santo dia sentado na amurada da praia da Ribeira, adorava andar no antigo aeroporto de hidroaviões, ver o mar, era um homem feliz, gostava de pessoas, estava sempre disposto a ouvi-las. Agnóstico convicto, acreditava na evolução da espécie, ficou maravilhado; com a viagem do homem a lua; me lembro dele sentado em frete à tv, acompanhando com atenção ao que ele chamava de maior acontecimento do século. Acreditava na ciência, Deus para ele era uma válvula de escape que as pessoas usavam para se centrarem, mas foi o homem mais bondoso que conheci; ele exercitava Deus todos os dias mesmo não sabendo, através do amor que ele tinha por qualquer ser humano que se aproximava dele, ele era um otimista, um confortador, mas também sabia ser implicante; lembro dele falando: - Que Diabo! E minha mãe: - Não gosto do nome do capeta na minha casa! E ele: - Que Diabo, será que não posso falar o que quero na minha casa? Ela: - Não! Ele: - Diabo, diabo, diabo! Aí era um tal de pode, não pode, até que ela ficava aborrecida, ele a beijava e a paz era selada, mas nunca conseguiu parar de dizer “que diabo!”; era um costume.
Minha mãe uma mulher, forte, árida e pequenina; media 1,57; nunca foi minha amiga; não tínhamos muito em comum e não éramos próximas, meu pai sempre foi nosso decodificador, um intermediador, que da sua maneira tentava nos aproximar, mas nunca tivemos objetivos comuns, ou melhor; talvez eu nunca tenha tentado conhecê-la; éramos tão geniosamente parecidas que me aproximar dela não era atrativo. Passamos à vida como conhecidas distantes. Gostaria de ter sido mais amada por ela e gostaria de tê-la amado mais. Na adolescência nos afastamos de vez, ela queria que eu fosse aquilo que ela não conseguiu ser; transferiu para mim suas aspirações pessoais e quando a resposta não foi à esperada, nos afastamos; sem contar o ciúme que sentia do amor do meu pai por mim. A sua forma seca nos deixou cada vez mais respeitosamente distantes.
Não lia muito, era prática, uma administradora competente, mas distante das divagações, não se perdia em sonhos, mas sempre a admirei, era quem comandava; matriarcado puro. Era geniosa, mas leal; foi uma heroína durante a doença dele. Acho que no fundo me pareço com ela.
“...Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais.”
A morte do meu pai nos afastou ainda mais, não nos parecíamos, e sem ele a nossa comunicação ficou truncada, nada havia me que fizesse querer ficar em Salvador, e a possibilidade de estudar no Rio de Janeiro veio como uma dádiva divina. Meus tios paternos, pais “daquele” meu futuro marido desde os dez anos; que eram como de costume; primos irmãos; convidou-me para morar com eles no Rio e fazer faculdade. A princípio minha mãe ficou disposta a mudar, alugarmos um apartamento e tocarmos a vida, mas no último momento; desistiu então, vim sozinha.
Não foi uma despedida fácil; ela se sentiu traída, desprezada, duplamente abandonada; perdeu o marido e seis meses depois a filha vai estudar em outro Estado; sei que foi um duro golpe, mas ela teve o apoio dos irmãos e sobrinhos e sempre foi muito ligada a eles; não éramos próximas, não tínhamos sonhos comuns, e sem o meu pai; o nosso decodificador, o entendimento entre ambas passou a ser mais difícil, por isso não me senti tão desumana quando peguei minha bagagem e parti.
Praga de mãe pega!
Inté!
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