sábado, 29 de março de 2008

FORAGIDOS

(Foto Fabio Rex)
29/03/08

Ás vezes; penso que não vai sair nada que preste daqui!
Minhas idéias são desconexas, às vezes repetidas, sem unidade ou uma cronologia; as lembranças vão surgindo e vou capturando-as, para que não se percam de mim. Pensei que fosse fácil lembrar, mas quando se começa, percebe que existem milhares de histórias e momentos, que marcaram nossa caminhada e forjaram nossos sentimentos.
Será que alguém vai ler isso?
Não pensem que a vaidade me leva a exposição; ao contrário; a necessidade obriga a nos expor. É talvez a única forma de dizermos que estamos vivos, que somos possíveis, que nos amamos, que somos “normais”, que temos o direito de andar pelas ruas sem medo, de exercitar a gargalhada, de interagir com os amigos, fazer novos também.
O foragido pobre tem que ser discreto, falar baixo, passar entre os pingos da chuva, ser invisível; quando é rico; muda de Estado, compra uma mansão, um carro vistoso, ou sai do país, quando é pobre no máximo muda de casa e torce que ninguém que conheça more perto de onde foi morar.
Foragido não tem crédito, não tem documento e tirar documento falso seria agregar mais problemas; é crime; então tem que ver, sem ser visto, andar no “sapatinho de algodão”; delicadamente, torcendo que os céus sejam condescendente e nos ofereça a invisibilidade.
Manter a sanidade, mental, emocional, pessoal e familiar é um dos trabalhos de Hércules; todos os valores são colocados à prova, a família fica de cabeça para baixo e nessa hora só amor, esse sentimento especial nos salva da desunião, do tédio, do medo, da frustração, da incerteza, e nos oferece esperança.
E se além de pobre, o foragido aposentou-se do crime; aí a pobreza bate à porta e chega a hora da verdade; a hora da reorganização, da confiança no que sentimos, a hora da expiação das culpas, dos acertos de contas pessoais. E se após tudo isso, pernacerem juntos; esse amor vira um amálgama indestrutível.
Há dois anos que quase não saio; vejo tv, um terror; leio muito e levei muito tempo com pena de mim; de nós, de tudo; fiquei triste, ele pelo seu lado precisava de tempo para encontrar-se, para perceber-se cidadão, para se localizar no espaço novo!
E não é fácil a adaptação de quem ficou, trinta e nove anos, preso dos quais quinze nos últimos anos. Mas o amor suportou as frustrações e ainda continuamos aqui, dizendo que temos o direito à liberdade.




Capítulo XIII

Meus tios eram pessoas boas, alegres, adoravam receber, tia Nygea era uma leitora nata, devorava vários livros ao mesmo tempo; fumava e lia; lia e fumava.
Mas minha hora era aquela, já estava com vinte e três anos, queria sair da redoma, da previsibilidade, me arriscar; não digo que foi uma decisão fácil, senti medo, pensei que minha vida ficar sem rumo. Não é fácil trocar a segurança de um lar “normal” para encarar o desconhecido, mas um dia, como outro qualquer, acordei, fui ao supermercado peguei algumas caixas de papelão; enchi com minhas coisas e parti pela porta dos fundos; foi uma decepção; ligaram para minha mãe em Salvador, mas eu já era maior de idade; não teve jeito.
Desse dia em diante nunca mais coloquei os olhos sobre eles; sei que já faleceram, sinto saudade, mas a vida seguiu o seu curso natural e a partir daí comecei a fazer escolhas nas quais a antiga família não mais se encaixava; agora era hora de construir novos laços; ficar era estar em uma gaiola de ouro, sempre recebendo, nunca opinando, sempre aceitando; para mim era melhor errar tentando.
E fui, ‘sem lenço e sem documento’, nessa época eu recebia uma parte da pensão do meu pai, que tinha sido funcionário público; um Exator de Contas do Estado da Bahia. Com a pensão; que antigamente só servia para ir ao cinema, comprar, bombons, roupas da Hot Chocolate, Cantão Quatro, Dimpus..., passou a servir para viver. No princípio fui para casa de Valéria, mas depois de um tempo a mãe dela; pedagoga começou a tentar convencer-me a voltar, dar uma trégua para família, etc, eu ouvia mas ia levando, adiando qualquer decisão
Foram tempos legais; rua Lins de Vasconcelos; Grande Méier.
Saíamos de madrugada; a Penitenciária Esmeraldino Bandeira, ficava em Bangu; nos dividíamos entre o Galpão da Quinta e os plantões no Esmeraldino, os presos gostavam do nosso trabalho; éramos boas em execução penal.
Ver o sol nascer na Avenida Brasil passou a ser comum; o soldo que vinha de Salvador para minha conta, bancava as despesas com o trabalho gratuito; no meu tempo estagiário era voluntário; trabalho não remunerado.
Depois de fugir muito dos conselhos da mãe de Valéria, mudei-me; fui morar em Vila Isabel a princípio em um pensionato para moças; uma vaga na parte de baixo do beliche e uma porta de armário, com cadeado; sem cadeado era furto na certa; tinha vendedoras de lojas, cobradoras de ônibus, diaristas, babás, cabelereiras, etc; no meu quarto havia seis beliches; doze moças.
Homem era proibido, não entrava, os namorados esperavam na porta da rua. Foi a época de todos medos, do pânico, do choro, da insegurança, nunca tinha pensado o trabalho que era viver sozinha; me lembro do papel higiênico, era preciso economizar e só era comprado quando vinha à menstruação, fora isso haja jornais velhos, recolhidos, nos mais diferentes lugares. Depois me mudei para rua Araújo Leitão, foi à época da dureza braba; eu passava o dia todo fora, trabalhando e estudando; para economizar, tomava café da manhã, almoçava e jantava no presídio, com isso me tornei uma pessoa presente nas unidades que trabalhava e depois de um ano, ganhei três “Elogios” dado pelo governo do Estado, por competência e dedicação; ledo engano não era dedicação; era necessidade mesmo!
Mas com a economia que fazia podia pagar um quarto, que era melhor do que a vaga; onde rolava brigas; muita mulher junta, muita coisa espalhada; muito caô!
Lá, na Araújo Leitão morava numa casa de vila, muito bonitinha, com uma senhora sozinha que tinha um gato. Não era permitido cozinhar, receber visitas, nem ver televisão na sala e se tivesse algum aparelho elétrico tinha de ajudar na luz, que eram de no máximo 60wts, mas fora isso ela era invisível; não incomodava; ficamos até amigas e passei a fazer o mercado; do meu bolso é claro; e o jantar com ela, que era portuguesa e cozinhava muito bem; mão de vaca, era expert em fazer xepa, sempre tinha uma salada de fruta, uma banana assada. Assim era minha senhoria; deve ter morrido milionária!!
Nessa época já estava no terceiro ano de faculdade e fazia um ano que estava fora de casa, trabalhava agora no centro da cidade, na rua Alcindo Guanabara e ficou mais difícil, já não dava para tomar o café da cadeia e às vezes fazia fórum em jejum, mas sempre jantava, sempre rolava um alimento naquela sala escura do Andaraí ou então filava a bóia na casa da Valéria.
Levei um ano dando plantões semanais em Bangu e na Quinta da Boa Vista; depois começamos a atender no Sanatório Penal em Bangu; vivíamos de trabalho, respirávamos trabalho, ela fugia dela e eu fugia de mim. Nesse momento fomos convidadas para trabalhar na jurídica central; não era interessante, muito pelo contrário, era monótono; líamos e dávamos andamento nos casos que chegavam até ali através de cartas ou que eram encaminhadas pela gabinete do secretário de justiça.
Papel, papel e mais papel. Uma rotina de escritório, fichas de término de penas, prontuários, ofícios; no presídio havia o contato com o ser humano, e era possível avaliar melhor a situação, a cadeia era alegre apesar de violenta, era menos comercial que hoje, mais solidária, uma pobreza homogênea!
Cada Unidade tinha sua característica diferente; Galpão, os gays, Esmeraldino me lembrava um filme de campo de concentração; aquela poeira, um monte de homens grudados nas cercas de arames um lugar árido, unidade violenta; Frei Caneca era cultural apesar de perigosa; Água Santa era porta de entrada; os presos chegavam ao sistema penitenciário por ela de lá eram “pulverizados”; Ferreira Neto (Nierói) era cadeia mamão para filhinho de papai, otário, que se envolvia no crime, o “Sítio do Pica-Pau Amarelo”; Talavera, feminina; Candido Mendes/Ilha Grande; o caldeirão; “onde filho chora e mãe não vê”; um lugar de uma beleza paradisíaca, mas predestinado ao sofrimento; já foi lazareto, presídio e penitenciária.


Namastê!

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