quinta-feira, 20 de março de 2008

FORAGIDOS

(Porto dos Tainheiros/Salvador/BA)

20/03/08
Olá amigos, mais um dia sob o sol!
E eu vou acreditando que as nuvens serão passageiras e o azul do céu imperará sobre nós.
Boa leitura!

Capítulo V

Às vezes acordo no meio da noite e os vejo dormir, é um momento em que todos estão tranqüilos e posso observá-los, e oro, para que possamos ter chances de vê-los com filhos, nossos netos; nossa eternidade.
Quase não saio; esses foram tempos de leitura, de informação televisiva e tédio. Porque esperar algo acontecer é angustiante; “a perspectiva de um fato é pior que o próprio fato”. Esperar a liberdade tem sido uma tarefa não muito divertida, o que vale é que ele está aqui.

Perdi a virgindade da maneira mais babaca possível; e não foi com Ibson!!
Estava voltando da casa do tio Adhemar; irmão do meu pai, advogado aposentado, tinha sido Secretário de Fazenda do Estado, morava na Avenida Mém de Sá, Porto dos Tainheiros, em frente ao aeroporto desativado de hidroaviões; nós morávamos no lado oposto, mas perto. A casa é uma história á parte, para lá convergiam duas gerações totalmente distintas.
Viúvo, só um filho, Dinamar, mistura de Aldina, mãe e Adhemar, morava na Pituba, um bairro da cidade alta, era casado e tinha três filhos, meu tio morava sozinho com uma empregada em uma casa grande, sete quartos internos e outros quatro externos, um belo quintal com uma mangueira frondosa, de mangas “carlotinha”, um mel; pé de pitanga, pinha, mamão, goiaba, banana, carambola, além de flores, plantas e ervas medicinais, era um local bem cuidado por ele, aonde os pássaros vinham comer e cantar; as janelas da sala de jantar davam para o quintal, o telhado dela era de telhas aparentes, envernizadas, sobre vigas também envernizadas, e deixava um cheiro de madeira no ar, além dos aromas vindos de fora e que invadiam a casa; se viessem da frente era cheiro de mar, se viessem do fundo era cheiro de planta. Posso fechar os olhos e ver as bordas dos canteiros decoradas de conchinhas que ele pegava na praia e as colava pacientemente sobre o cimento, uma infinidade delas, coloridas e brilhantes, desenhos grafados na minha memória e no meu coração, me sinto agraciada por ter essas lembranças.
Ele era aposentado mas, ativo e vivia procurando ocupar o tempo. Tinha uma biblioteca “poderosa”, e a colocou à disposição dos jovens do bairro, então os primeiros quartos interligados viraram salas de estudo, janelas voltadas para o mar, uma maravilha; eram concorridas; muita gente puxou meu saco por causa delas. A casa se tornou uma referência para trabalhos em grupo, havia um extenso material de pesquisa, além disso rolava um lanchinho, aí então que virou “point” mesmo. Lá só se estudava; não se fumava, nem namorava, nem brincava; ele estava sempre por perto ajudando a localizar os livros que ficavam empilhados pelas mesas de canto, nos braços das poltronas, ou naquele monte de estantes, que mais pareciam ‘cristaleiras’; armários trabalhados, com portas de vidro lapidado, que se usava antigamente para guardar cristais. Havia muitas enciclopédias, dicionários diversos e de várias línguas, livros de contos , poesias, literatura brasileira e universal, além dos científicos, era um maná de informações, um celeiro de conhecimento. Era maravilhoso sentar naquela mesa enorme no meio da biblioteca, e através dos janelões abertos, ver a balaustrada e o mar, de vez em quando um barco, uma ave.
Outro grupo se reunia lá, o da terceira idade. Para entenderem melhor como eles dividiam o espaço vou descrever a disposição da casa. A porta da rua dava para o corredor, do lado direito três portas, dois quartos interligados que se transformaram em biblioteca, juntamente com o seu par do lado oposto corredor, mais a frente havia outro quanto, depois a sala, onde havia mais dois quartos e do lado oposto, a copa e em seguida a cozinha que possuía uma porta que dava para o quintal; era arejada tinha janelas e já no quintal vinha os outros quartos, três serviam e depósitos e um era a oficina do meu pai; ou melhor ele chamava de oficina mas, era na verdade um quartinho de entulho, tinha de tudo, porca, prego, solda, rádio velho, tv quebrada, pneu, pedaços de ferro e mais o que você imaginasse; quando não estava pescando ou jogando, estava tentando consertar alguma coisa.
Ele tinha de tudo ali, era um guardador de inutilidades, que dizia servirem para seus concertos, ah!, e os banheiros, eram três, e no quintal, nunca entendi, uma casa com tantos quartos e tão poucos banheiros e externos; vá entender.
Os senhores se reuniam na sala de jantar e na copa, mas quando o jogo estava bom, era colocada uma mesa no quintal. Jogavam buraco a dinheiro, mas era pouco, uma brincadeira, eram mais ou menos vinte, entre 68 e 80 anos, aposentados e que jogavam de tarde, de noite e madrugada adentro; inclusive meu pai; adoro buraco, aprendi com ele; jogavam gamäo também; revezavam-se nas mesas e com os parceiros, ora uns jogavam, ora olhavam os outros jogarem.
Era uma casa diferente, onde gerações distintas conviviam harmonicamente e com objetivos claros; nem os jovens chegavam perto do jogo, nem os adultos interferiam na área de estudos; cada um com seu espaço e com sua diversão; até por que lá era divertido estudar.
Nos dias de regata, a casa ficava concorrida, filho, nora, netos, sobrinhos, os amigos que não paravam de jogar nem em dia de regata, os jovens sentavam na balaustrada para ver os barcos, os adultos nas cadeiras de lona em frente da casa, era uma festa colorida e alegre. O Clube de Regatas Santa Cruz, ficava no mesmo passeio, há alguns metros de nós, íamos e voltávamos toda hora para ver os remadores colocando os seus barcos na garagem. Lindos, negros ou queimados de sol, fortes e jovens, eram nossos sonhos encantados, todos mais velhos não davam a menor bola, mas mesmo assim era uma festa ter aquela ‘homarada’ por perto, mesmo que fosse só para ficar babando.
Tio Adhemar, era olhos da minha mãe sobre mim. Se eu fumava e ele sabia, ela também sabia, se eu tinha beijado e ele sabia, ‘mamy’ logo sabia, ele estava lá em casa todos dias e ela esperava o relatório para saber como ia me ferrar. Era pontual como relógio; na hora do almoço ele chegava, mas como tinha úlcera comia antes em casa, sentava no sofá e cochilava, até minha mãe ir conversar com ele, aí no princípio da tarde ele ia para casa ver como as coisas andavam. No começo eu achava que ele me perseguia, mais depois percebi que fazia isso para agradar a minha mãe!
Tomei algumas boas cacetadas dela quando garota, apesar de não enfrentá-la acabava fazendo o eu que queria: -Tá bom mãe, é a última vez! Última vez nada, o negócio era não discutir.
Quando o meu pai morreu, e vim para o Rio, ela foi morar na casa dele e o cuidou durante anos, sempre achei que no fundo ele tinha se apaixonado por ela.


Abraços amigos, até amanhã!

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