(Foto Douglas M)
30/03/08
Bom Dia!
Muita Luz e Muito Axé!
Boa Leitura!
Enquanto tento escrever, toma-me de assalto lembranças das mais diversas, fatos há muito esquecidos; imagens, cheiros e gostos fazem parte dessas memórias...
Capítulo XVI
Minha mãe matando galinha no quintal; pagava a bichinha, dava, uns golinhos de pinga; raspava as penas do pescoço, e ‘créu’, já era a bichinha, o sangue era separado em uma tigela para fazer a molho pardo, recordo meu pai trazendo os mendigos para comer na varada, e minha mãe dando ‘pitís’homéricos: -Tá maluco, isso aqui não é a prefeitura, parece uma procissão! E ele esquentava a comida e servia em pratos que minha mãe deixava lá no quartinho dos fundos, e quando ela falava, ele dizia: - Você gostaria de comer numa lata de leite? E como vai dar a comida numa lata? Aqui todo mundo como em prato, não se incomode eu lavo depois. Era um ser humano respeitoso!
Uma vez ela que não gostava de comer em prato rachado ou lascado foi premiada no almoço, com o que ela tinha mandado jogar fora; não deu outra; tacou o prato na parede; meu pai perguntou: – Ué! é pra quebrar? E jogou o prato de bife no chão, e logo tudo estava no chão; insatisfeito Seu Oswaldo se levantou foi à cozinha pegou a lata de mantimento cheia de açúcar e emborcou na cabeça de Dona Angélica; que fazer? Todos nós ficamos duros “- ESTÁTUA”; as empregadas ficaram mudas e putas, teriam que arrumar tudo, mas mantiveram a placidez; eu dava gargalhadas insanas por dentro; “por fora uma bela viola”; fiz uma cara de chocada e caí fora em cinco segundos : - Vou almoçar na casa de Tio Adhemar!!
Me lembro da vez quando ganhei um pintinho lindo; amarelinho, que veio com um laçinho rosa no pescoço e eu o matei esmagado sem querer; dei banho no coitadinho, e coloquei em cima de uma fraldinha para ele secar, só que o bicho não ficou no lugar, e quando voltei para vê-lo, o dito estava no batente da porta; pisei no coitadinho. Fiquei chocada; os pais não deviam dar bichinhos que as crianças não tivesse condições de cuidar ou então assessorá-los nesses cuidados; não quis mais ter bichinhos!
Das corridas de urubus na maré baixa; amarrávamos uma fita no pescoço dos coitados e ficávamos correndo de cima da balaustrada e os urubus lá na areia correndo também; quem chegasse primeiro ganhava pelanca; adolescente é um bicho babaca às vezes fazem cada demência...
Fecho os olhos e posso ver minha rua, Kung-fu Fighting toca ao fundo; vejo o Largo da Ribeira, a padaria, a sorveteria, os barcos que fazia a travessia de Piripiri e Paripe; vejo a feira e sinto o cheiro do umbu, de caju, de siriguela, bacias de rala-côco, outros mariscos, das cordas de caranguejo, siris, lulas, piabinhas; do caldo de sururu e da mariscada exalando seus cheiros divinais entre as barracas; e ainda o acarajé. Ah! O acarajé! Essa é minha identidade baiana o cheiro da minha infância, o gosto que me traduz, cheiro das minhas alegrias, das brincadeiras infantis, o sabor de felicidade!
A rua principal do bairro, a Lelis Piedade, cortava minha ao meio e, na esquina encostada na loja de ferragem, estava ela; a “baiana do acarajé”; chegava cedo varria o espaço, jogava água com sabão pra espantar a urina dos bebuns da noite e começava a armar seu tabuleiro; nove e meia, dez horas da manhã ela chamava umas crianças da rua e distribuía uns mini acarajés; depois só parava as nove da noite era, abará, bolinho de estudante, cocada, acarajé; o dendê invadia meu quarto, meus pulmões; um cheiro de felicidade, alegria e respeito; todos os meus sentidos se despertam geneticamente baianos no encontro lascivo com o acarajé.
Lembro-me também do primeiro presente que comprei para um namorado; era uma “atualíssima” camisa cor de abóbora de gola cacharrel e com bolas pretas; um horror, mas em 75 era moda, mas o cara beijou uma outra garota no dia anterior; então, desfiz o embrulho vesti a camisa e quando o encontrei, terminei com ele; chorei muito, mas foi melhor do que ele ter ficado com o presente e eu com o chifre.
A minha casa ficava na ponta da península itapagipana, isto quer dizer: - Praia, veraneio, férias! Era parente o tempo todo, saia um vinha outro, minha mãe cozinhava muito bem e tratava com carinho as pessoas; tinha prazer em ter a casa cheia de súditos que a seguiam; primos, cunhados, tias, sobrinhas, irmãs. Houve uma época que minha avó, Maria, mãe de mamãe, foi passar alguns meses conosco, depois da morte do meu avô Pedro; era evangélica, vestia-se de preto, usava um cabelo preso em um coque, mas quando os soltava vinha quase no tornozelo, lia a bíblia o tempo todo, mas falava mal de todos o tempo todo. Fui premiada e ela ficou no meu quarto, e lia com ela a bíblia todas às noites; as mensagens eram lindas, e ela lia com um respeito, uma quase adoração àquelas palavras, mas se comportava de forma diferente; foi aí que comecei a aprender que nem tudo que a boca fala o coração sente.
No inverno era mais tranqüilo; aparentemente tranqüilo; tio Adhemar estava lá toda hora; Seu Souza que era amigo de meu pai e que tinha quase oitenta anos, acabara de casar com uma moça de dezenove, almoça lá todo os sábados; ia jogar gamão com o meu pai, não muito gostava do tio Adhemar; ele após comer tirava a dentadura e a limpava no guardanapo; minha mãe olhava apopléctica para meu pai e o Souza nem aí. Meu pai dizia que ele era velho, que não fazia por mal, que não se podia constranger um homem daquela idade e minha mãe dizia: - Daquela idade uma ova; a mulher dele está grávida; ele é porco; ou fala você ou falo eu!; mas ela nunca falou nem ele também.
Adorava assistir filme pela madrugada a fora, sempre escondida para minha mãe não ver; meu pai chegava de madrugada da casa do meu tio e como não tinha sono ia ver filme e lá vinha eu na ponta dos pés me juntar a ele; Combate, filmes de cawboy, Bat Masterson, A marca do Zorro... e quando ela pegava falava pelos cotovelos e o sono dele chegava rapidinho, e o filme já era. Nisso nós duas nos parecemos a nossa língua não é fácil, falo muito, até esgotar as variantes, as possibilidades, não dou trégua e acabo vencendo por total desestabilização mental do oponente.
Namastê
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