quarta-feira, 2 de abril de 2008

FORAGIDOS



02/04/08
A beleza e a tranqüilidade da Vila Dois Rios, contrasta com as lembranças das dores ali sofridas, dos abusos, do abandono, da solidão...



Capítulo XVII

Muitos presos vieram conversar conosco durante o Festival; moças diferentes no pedaço; carne nova; soubemos que havia muitos problemas, jurídicos, de saúde e ficamos de ouvi-los antes de irmos embora; naquele momento éramos o contato mais próximo, com a direção geral, estávamos ali para seremos juradas, mas não custaria nada ouvir as demandas deles...
Eu e Valéria ficamos pouco no auditório, já tínhamos ouvido muito sobre o “Caldeirão do Diabo”; estávamos ali, queríamos conhecê-lo e fomos junto com alguns presos ver o lugar.
A cadeia era uma construção de três andares, velha e suja; já tinha visto dias melhores, agora amargava o esquecimento, estava como sempre lotada; possuía quase o dobro de presos do que a sua capacidade inicial de mil, e com os anos de degradação essas vagas viram umas 600, mas a unidade naquele momento abrigava 1.200 presos. Os corredores cumpridos, altos e escuros, dava um ar tenebroso ao lugar; era uma construção com uma arquitetura sólida, bem anos quarenta, escadas curvas e amplas ligavam os patamares; no térreo; no lado esquerdo tinha, a inspetoria, a cooperativa dos internos; uma parte da galeria era composta de cubículos individuais; mas onde moravam uns seis; e no final do corredor que foi divido ao meio por uma parede; ficavam doze “surdas”; celas de castigo, que só eram acessadas pelo lado externo do prédio.
Do lado direito, tinha a sala do CRI – Clube Recreativo dos Internos; vazia só com uma tv, mais à frente, a capela e depois o “rancho”, que era como chamavam o refeitório.
O primeiro andar, do lado direito era composto por cubículos individuais e no esquerdo os coletivos, já no segundo (mas que os internos chamavam de terceiro), as disposições se invertiam e no final do corredor da direita haviam celas destruídas onde ficava o isolamento; o castigo.
Depois fomos levadas a outro prédio que ficava atrás do primeiro, mas que não era visto da frente, estavam separados por um muro onde havia uma porta de ferro que dava acesso à outra edificação, só que mais nova; uma caixa de três andares, a qual chamavam de ‘anexo’. O andar térreo estava vazio, desativado e só os dois outros andares eram usados, oitenta presos ocupavam a unidade especial, em celas duplas, que eram usadas por três; ali também havia excesso de gente.
Ali ficavam isolados os presos que o sistema classificava de “periculosos”; eram separados do convívio com os outros pelo portão que só estava aberto por causa do festival; a situação no sistema estava confusa por causa desse isolamento e uma comissão de presos estava pleiteando, com o apoio da pastoral penal, a abertura definitiva do portão.
Na volta para o auditório fomos tomando pé da situação difícil em que os internos estavam; a jurídica já não funcionava há uns seis meses; o antigo assistente não voltou mais e não havia estagiário que quisesse pagar para trabalhar tão longe; o governo federal tinha acabado de sancionar a Lei de Execuções Penais, mas eles ainda não sabiam que direitos tinham; tudo estava muito confuso com o setor jurídico parado. A penitenciária estava cheia, muita criança e mulheres que se espalhavam pelas galerias e corredores; sentadas pelo chão como num piquenique, nos bancos; parecia que tinha gente em todos os espaços.
Quando chegamos ao auditório, um grupo de pagode se apresentava, e em seguida o evento ia começar; fomos conduzidas por um preso que fazia parte da organização para o nosso lugar no júri; o mestre de cerimônia abriu o concurso de música e poesia, agradecendo a presença de todos e o festival começou!
Do ‘camarote’, as autoridades observavam a festa; ainda não tínhamos sido apresentadas à direção da penitenciária, mas eles já tinham sido informados da nossa chegada e no intervalo fomos convidadas para o almoço na casa do diretor.
Caminhamos de volta, precisávamos do banho que ainda não tínhamos tomado e uma refeição caseira cairia bem; nas ruas de chão de terra e areia; folhas caídas e flores nos jardins e nas árvores. Como um lugar tão lindo podia abrigar o degredo?
A casa do diretor, tinha dois andares; linda, bucólica, ampla, arejada; tinha um quintal lateral de muro baixo, ficava de esquina, em sua volta árvores, e tinha um mar lindo à sua frente; ficamos encantadas, um lugar maravilhoso para estar!
De quase todos os cômodos da casa se via o mar, na parte de baixo; salas de visita e jantar e no segundo pavimento quartos; além de mim e da Valéria, havia mais duas estagiária que também foram convidadas, e todas nós fomos alojadas lá.
O almoço foi tranqüilo e saboroso; na mesa, Milton, Amiche, Valéria, eu, as duas estagiárias, o comandante da companhia e o diretor; o cozinheiro era um interno e trabalhava maravilhosamente bem; após a refeição Milton subiu dizendo ir tirar um cochilo, as estagiárias o seguiram, o Sargento Amiche voltou para a unidade, o restante ainda continuou na mesa; conversando.
Às vezes a vida nos prepara armadilhas para testar a nossa resistência, a nossa consciência...

Namastê!

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