quarta-feira, 16 de abril de 2008

FORAGIDOS

(FOTO FLICKR)
16/04/08
Olá!
Ainda respiramos, então temos chance de mudar alguma coisa, no mínimo hoje, um gesto de gentileza, um abraço sem motivo, um riso sincero, um te amo de surpresa, um beijo roubado; vamos tentar? Amanhã quem sabe poderemos repeti a dose e aí, um dia, nos acostumamos a ser assim a cada minuto.
Boa Leitura!




Antes, uma escancarada esperança.
Depois, o vácuo.
Agora ela volta, tímida a se insinuar.
Insiste; ainda frágil, em nos empurrar para fora do nosso micro-mundo.
Ignora a nossa dor, e nos acena com pequenos gestos, a possibilidade de prosseguir.
Insinua-se ainda frágil, mas tende a ficar prenhe; Oxalá dê-nos seus frutos!
Enquanto isso nos redescobrimos, após quinze anos de não-convivência vamos, nos aprendendo, nos surpreendendo, nos perdoando.
Essa bela que nos espreita, tem pincelado algumas cores; ainda que pastéis; em nossas vidas, e faz com que o cinza deixe de ser tão permanente.
Como ganhar sem perder? Manter o todo, reafirmá-lo sem que se pulverize?
Sei lá; continuamos tentando, enquanto a vida nos prepara para nós mesmos, nos dando a chance de nos conhecermos de novo, de confrontar-nos com as nossas diferenças e percebê-las reconciliáveis.
Certeza? Só uma, os “todos nós” é melhor e mais prazeroso que do que o “nós” estéril da falta de um dos elos; então seguimos juntos; o rastro tímido dessa esperança acanhada, que nos olha, talvez curiosa com a nossa resistência.


Quantos dos que lêem o que escrevo me conhece?
Mesmo aqueles com os quais convivi muito tempo? Pouquíssimos.
Reconheço que falo para pessoas que ou não me conhecem ou não conheceram bem, que não conviveram comigo em condições que pudessem descobrir, gostos, preferências, hábitos, ou mesmo como penso ou o que fazia no meu tempo fora do trabalho, do que ria e com o com me distraia, o que lia, qual música ouvia.
Enquanto escrevo percebo que passamos pela vida de forma discreta, entre os pingos da chuva, talvez pela forma com que a compartimentei; acho que possuo uma boa dose de hormônios masculinos, só dá para pensar uma coisa de cada vez; por isso achei mais fácil dividi-la em três partes; a vida doméstica, onde sempre foi território nosso, pessoal, onde muitos poucos conseguiram entrar e os que chegaram até nós, foram educadamente distanciados.
Para mim essa foi uma forma de proteção para uma micro-família, onde a mãe passava mais tempo trabalhando do que com eles, e que o pai estava ausente desde que eram pequenos; a casa sempre foi o útero, onde sempre fui eu mesma com defeitos e qualidades; não sei quantos filhos conhecem realmente os pais ou quando foi que os descobriram em sua grandeza e na sua pequenez, os meus me sabem; e isso sempre gerou em nós uma confiança respeitosa.
Nunca valeu mentir; mamãe ama, adora, venera, mas mãe é mulher, sangra todo mês, tem TPM, fica puta com o mundo e consigo mesma, e nesses dias; como dizia uma amiga “Dez anos de análise", para os três, mas o amor, foi exercício diário, e mesmo nos dias de pouca sintonia, foi o elo, que nos uniu e fez dessa caminhada, não mais de um homem buscando liberdade, e sim uma família a procura dela.
A segunda, era a vida do trabalho, onde a minha mente se voltava completamente para militância, que mais que consciência era a necessidade de dar uma direção digna para uma família que vivia entre dois mundos, e fora deles ao mesmo tempo, então, nunca consegui compartilhar dados da minha vida doméstica; portanto vida de casa era deixada em casa, como forma de precaução, para que eu pudesse dar conta das coisas, sem me ver emaranhada em dezenas de conselhos ou interferências, e depois não pudesse conduzir a vida sobre o fio da navalha que era conviver com a marginalidade, trabalhar com ela, e orientar os filhos para perceberem-se cidadãos apesar da vida fronteiriça em que vivíamos e vivemos até hoje.
Tive ou ainda tenho, não sei; amigos queridos, que sempre foram mantidos distantes, não que eu não os quisesse por perto, para dividir com eles o que gosto, o que ouço, o que leio, ou que amo, mas sempre a vida nos jogou para o futuro, para espera; sempre esperando o dia em poderíamos ser nós mesmos, sem o peso da prisão; que pesa irmãos, pesa pra cacete; e reunir-nos com os que amamos, mas antes os grilhões precisavam ser rompidos e ainda precisam; continuamos vivendo no vácuo do tempo, esperando o último carcereiro do sistema, abrir o cadeado definitivo que nos afasta do que somos.
A terceira, a vida de mulher de preso, mais uma vez tinha que dividir as forças, para suprir o equilíbrio doméstico e o dele, de ir semanalmente até a boca do inferno, ficar nua, ter a vagina espiada, a comida vasculhada, passar horas de fugaz esperança, em um pátio cheio de uma triste alegria pelo reencontro veloz, o relógio gigante a nos olhar, cronometrando o tempo da felicidade oferecida em doses homeopáticas, ou ficar encarcerada, na visita íntima, em um cubículo cinza, frio como os túmulos e ser regurgitada no final da tarde, com um sentimento de vazio, de impotência, de pesar.
Ali eu era visita, portanto a vida doméstica também era uma vida não multiplicada, não compartilhada, sempre fiz o movimento de ir até as pessoas, mas nunca o caminho contrário foi estimulado, era prudente que nos mantivéssemos o mais afastado possível de problemas que eu não pudesse resolver, e os quais poderiam nos desunir, em vez de criar uma resistência contra as intempéries.
A verdade é que é foda para uma mulher bipolar, criar três filhos, de um homem preso, sozinha, sem relações familiares de qualquer espécie, ser militante de direitos humanos numa área difícil; a prisão, e ser ao mesmo tempo esposa, mãe, e público-alvo do seu próprio trabalho.
Então as coisas não foram do jeito que eu gostaria, foi do jeito que deu; que a minha sanidade permitiu, se foi a melhor maneira de lidar com as elas?
Não sei, mas apesar de toda improbalidade, ainda nos amamos.

Namastê!

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